11 de janeiro de 2012

Marina Colasanti - Cidadã do mundo


Relendo alguns artigos mais antigos reencontrei escritos da MARINA COLASANTI...
Lembro bem de alguns livros dela que li: A Nova Mulher, Mulher Daqui Pra Frente, Aqui Entre Nós, Eu Sei Mas Não Devia, Rota de Colisão, acredito que eram escritas para o Jornal do Brasil e Revista Nova. Admiro essa Poetisa/Escritora!!


Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e no ano de meu nascimento mudou-se para o Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com: Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Sua obra é muito rica e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
De repente me peguei saudosista e compartilho com vocês esse texto extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia...


A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.  

E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 


A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. 


Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. 


Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
MARINA COLASANTI 

Fica comigo a impressão de que o tempo não passou, essas abordagens da MARINA COLASANTI são tão atuais...
Regina Coeli

4 comentários:

  1. Oi, Regina! Saudade de você, menina!
    Adorei o texto que, como você mesma disse, é tão atual! Que grito, parece que vem da alma diretamente para as nossas almas!
    É esse nosso mundinho, cada vez mais superficial e egoísta. As pessoas não se doam mais, preferem não se envolver, fazem cara de que não é com elas. Muito triste!
    E não podemos nos deixar envolver por esse espírito conformista, banalizador, afinal, ESTAMOS VIVAS!
    Vida pra você no dia de hoje é o que desejo, Regina!
    Beijos
    Renata
    PS: tenho me sentido mais viva ultimamente, voltei a postar diariamente, pois estava muito desanimada!

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  2. Olá, querida
    Maravilhoso poder compartir com vc hoje esses pedaços em forma de amor e poesia...
    Me valeram muito!!!
    Bjm de paz e alegria

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  3. Olá, Regina!
    Que postagem linda!
    Adoro a Marina Colasanti! E você combinou brilhantemente o texto e as imagens!
    Uma mensagem bastante positiva e reflexiva para o mês de janeiro.
    Suas palavras no meu blog me emocionaram e me incentivaram.
    Obrigada.
    Beijos,

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  4. Oi Regina, passando para te desejar um ótimo fim de semana.Adorei o texto.Bjos

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